terça-feira, 21 de setembro de 2010

INTEMPERANÇA(ou Uma para Wania Cristina)

Comprei um desses blocos de papel para treinar a verve, como se diz (vez ou outra envio uma crônica para o jornal). É necessário exercitar a escrita. E o pior de tudo é que eu, analisando friamente, não tenho exercitado porra nenhuma ultimamente, a não ser um ping-pongzinho nas minhas tardes sem ofício e sem função, mirando a bola e simplesmente descendo o braço. É bom, eu até que gosto: as crônicas nem sempre conseguem extrair todas as ferrugens da alma. Só que o ping-pong, descobri depois de matutar um pouco, jamais me transformará num homem famoso e reverenciado, cheio de mulheres lindas e histéricas batendo na minha porta – os chineses, afinal de contas, estão sempre por aí, mirando a bola bem melhor que eu. Acabou então que as piadinhas nas reuniões familiares, os amigos na mesa de bar e a própria vida em si têm me levado direto a tal objetividade universal, às camisas engomadas, aos currículos com mais de cinco laudas, todos cheios de invenções, e, agora, aos tais bloquinhos de papel.
Lembro-me agora do dia em que eu, numa vã tentativa de conseguir a total autonomia financeira, me apresentei na secretaria de transportes da prefeitura municipal: sentado num banco, esperei por mais de quarenta minutos sem que ninguém me notasse – um pessoal analisando papéis, indo e voltando de uma sala para outra, apressados, sem parar. Garanto que Hemingway, numa situação dessas, já teria dado um murro em alguém. Será que ninguém me via? Notei então que, sentado lá no canto, pesando mais ou menos uns 150 quilos, uma espécie de sósia de Barry White olhava para mim.

- Já foi atendido? – ele perguntou.
- Sou Rodriguez – respondi, me empertigando todo -, o novo contratado. Mandaram um aviso, era para eu aparecer por aqui.

Ele se levantou e caminhou até a parede, onde enxerguei algumas folhas de papel dependuradas, nomes e números, dezenas deles. Ficou olhando para aquilo por um bom tempo, murmurando algo.

- Rodriguez – disse, virando-se, logo depois -, o seu nome não consta na lista.
- E isso significa o quê? – perguntei.
- Não sei. Vá até o quarto andar e procure dona Vânia Cristina, ela pode te dizer o que isso significa.

E lá fui eu na direção do quarto andar, à procura de Vânia Cristina, que bem poderia ser uma das leitoras eventuais da minha coluna.
Havia uma recepcionista e ela abriu os seus dentes quando me viu. Talvez me imaginasse algum chefe de gabinete ou candidato a deputado estadual. Com uma voz aguda, me informou que a dona Vânia Cristina estava viajando, só retornaria em alguns dias. Não importava. Sentei-me numa cadeira e contei a ela sobre a minha situação. Ela me escutava atentamente. Quando acabei, me olhou e disse que aquele meu caso só mesmo a dona Vânia Cristina poderia resolver.
Saí dali intrigado, suspeitando que as coisas poderiam não estar indo tão bem como eu gostaria.
Passei alguns dias em casa, lendo livros, vivendo um pouco a Paris dos anos 20. Era uma beleza por lá naquela época. Aproveitei e joguei também umas partidinhas de ping-pong, com o celular no bolso da bermuda, na expectativa, só que ele não deu sinal. Em que lugar estaria Vânia Cristina, eu pensava entre um ponto e outro, a morena dos seios fartos que lia minhas crônicas antes de dormir?

- Ela chegou, mas no momento está numa reunião – me disse a recepcionista, quando voltei.
- Você falou que estive aqui?
- Ainda não. Se quiser, posso te ligar quando ela ficar a par de tudo.
- Certo...

Ela se esqueceu ou não quis falar? Aquela dificuldade de comunicação começava a me preocupar de verdade. O meu emprego sonhado, a realização dos desejos. Algo me dizia que talvez a secretaria de transportes do município não simpatizasse comigo. Será que eu fazia parte de alguma lista negra secreta? Será que investigavam o meu histórico, os dias de maresia, as noites de divagações nas mesas de bar cobrando o seu preço agora? Será que achavam as minhas crônicas ruins? Ou não me conheciam? Eu pensava e a cada instante a minha cabeça enchia-se de dúvidas e de teorias, de quase certezas também. Saí para fumar um cigarrinho, encontrei com o Barry White na escada.

- Ô, rapaz, você sumiu! – ele falou, como se fossemos amigos.
- Ainda resolvendo a minha estória.
- Conversou com a dona Vânia Cristina?
- Estou esperando ela sair da reunião.
- Que reunião? Falei com ela há 10 minutos, não tinha nenhuma reunião marcada.
- Mesmo?
- É.

Apertei a mão de Barry, dei uma desculpa esfarrapada, falei que tinha me enganado sobre a tal reunião e retornei ao quarto andar.

- Soube que dona Vânia voltou, minha querida, gostaria de conversar com ela agora.
- Olha, vou ser sincera com você, a dona Vânia não vai poder te atender hoje.
- Porquê?
- Porquê ela está muito atarefada.
- Pois então você diz a ela que eu vim tratar do assunto do jornal.
- Como assim? – ela me perguntou.
- Escrevo para o jornal também, se você não sabe. Creio que ela deve estar por dentro dessa minha visita.

A recepcionista me olhou com aquela cara que tinha, uma cara estranha, o nariz apontando para frente, a boca meio retorcida, como se eu estivesse falando chinês ou qualquer coisa assim. Depois de alguns segundos, no entanto, acabou entrando na sala de dona Vânia e fechou a porta atrás de si. Eu então estava sozinho. Havia um quadro de Jorge Amado na parede, ele de bigode e camisa florida sorrindo para mim. Eu tentava imaginar o que o fazia tão feliz.
A recepcionista voltou.

- Dona Vânia Cristina vai te atender, ficou curiosa sobre esse jornal.

Eu havia conseguido.
Caminhei até a porta decidido, da mesma forma, imagino eu, que Hemingway caminharia também. Girei a maçaneta e entrei na sala. Vi outros quadros na parede, Jorge sempre lá, um tapete vermelho no chão, um conjunto de cadeiras no centro, e, do outro lado, colada à janela, uma imensa mesa de madeira de lei, dessas antigas. Era lá que Vânia Cristina estava, metida num vestido amarelo, um colar de bolinhas azuis ao redor do pescoço. Foi uma surpresa pra mim. Ela não tinha os lábios carnudos, como eu imaginara, nem os seios fartos ou as pernas grossas, tampouco a sensualidade, o jeito carinhoso, a graça que me fez acreditar ter. Vânia Cristina, a mulher que eu pensara ser a minha sorte e a minha salvação, era apenas uma coroaça, com cerca de sessenta e poucos anos, e olhava-me com uma cara de tédio, como se eu fosse o carteiro ou o homem do gás.

- Opa - eu disse para ela.
- Boa tarde, em que posso ajudar?

E ali, naquela sala, de frente para o que a minha imaginação havia me levado, eu repentinamente perdi a voz e os pensamentos se embaralharam – em questão de segundos, estava completamente paralisado. Ela, por sua vez, levou uma das mãos ao queixo e ficou me observando.havia algo entranhado ali. Notei seu rosto seco e afundado, as veias azuladas entre os anéis. Era diferente, mas outra vez o gosto amargo ganhando o céu da boca. Jorge me olhando na parede, feliz, e eu nunca fui muito chegado nele nem nas estórias dos coronéis. Tinha grande valor, claro, mas a minha vida era outra, feita das sombras dos prédios e do sol que marcava o asfalto, a melancolia das cidades e das pessoas, minha vida era um tapa na cara dos sonhos, aquela velha olhando para mim, coçando o seu queixo, de certo achando que eu era algum tipo de imbecil ou de retardado, considerando aquela minha visita muito maçante, nada demais no seu rosto, nada de menos, somente um enorme desconforto, refletindo talvez o desconforto que havia no meu.

- Algum problema, meu filho?

Então descobri que eu não tinha o que falar para ela, embora de alguma forma soubesse que teria de falar algo. Por isso, quem sabe, falei a primeira coisa que me veio à cabeça naquele instante, com uma voz um pouco alta para os padrões da sala.

- Você votaria em alguém que usa peruca, Vânia?
- Não entendi – ela respondeu, levantando uma das sobrancelhas -, é sobre isso a matéria para o jornal?
- Não existe matéria- eu disse de uma vez - Queria apenas te conhecer e, me disseram que você resolveria o meu problema. Mas você me enganou. Aliás, todos neste prédio me enganaram, todos, a não ser o Barry lá embaixo. Só ele respeitou os meus sentimentos, só ele tem uma alma digna de apreciação.
- Olha, Rapazinho, hoje não estou com muito tempo para brincadeiras – ela falou, alterando-se.
- Quem não tem tempo para brincadeiras sou eu, minha senhora. Já estou de saco cheio de brincadeiras, tenha certeza disso. Me diga: o que é que vocês viram no meu currículo que fosse tão ruim? São as minhas crônicas? Me diga, Vânia, eu quero saber. Tenho esse direito. Não pense que, por ser assim tão bajulada, pode ir pisando nos outros, como se não fossemos nada, fazendo o que quiser. Saiba que, embora ainda não tenha conhecimento, eu sou um dos grandes também, eu sou um dos caras! E saiba de outra coisa, minha querida: tudo o que fazemos nessa existência, volta pra nós um dia – tanto faz se for do lado do bem ou do mal. Anote isso. É possível que te seja útil nesse restinho de vida que ainda tem.
- Você é completamente louco – ela gritou, usando de uma força que não imaginei que viesse a ter – saia de minha sala agora, já, antes que eu chame toda a guarda municipal!

Então os segundos em que ficamos nos encarando demoraram muito a passar. A porta foi aberta atrás de mim, escutei a voz da recepcionista perguntando se estava tudo bem, dona Vânia. Vânia não respondeu, eu também não. Já tínhamos falado o suficiente. Virei-me e saí, deixando-as para trás, desci as escadas e logo ganhei as ruas, juntando-me às pessoas que caminhavam de um lado para o outro sem parar. Tudo parecia envolto em neblina e confusão. Eu pedia para sair daquela confusão. Talvez amanhã, pensei, talvez amanhã eu venha a ter alguma resposta, elas que chegam sempre atrasadas. Talvez tudo clareasse com o tempo. Mas, pensando bem, se não clareasse, também não fazia mal: eu ia apenas continuar do mesmo jeito, o que não era de todo ruim - acordando a hora que quisesse, deixando a minha barba crescer sem preocupação, os cabelos ao vento, a intemperança, e me restaria ainda a melhor parte de tudo – os meus blocos de papel na estante e as minhas tardes sem ofício, mirando o imaginário chinês do outro lado da mesa, cortando a bolinha sem piedade ou misericórdia - da mesma forma, imagino eu, que Hemingway cortaria também.

domingo, 19 de setembro de 2010

Vida qualquer coisa (Uma bobagem em homenagem à Alice Ruiz)

Qualquer coisa que se sinta
Deve ter um remédio que te sirva
O psicólogo vai te dizer
Que não é assim que deve ser
Tantos sentimentos não deixam você viver
Amar, por quê?
Tome fluoxetina
Sofrer não tem fim?
Tome Valium
E também me prescreva Ritalina
E muitas sessões de terapia
Um emprego melhor paga um especialista
Mais grifado
E assim, dopado
Ele irá te dizer como sua vida deve ser
Já que você não sabe mais como viver
Sendo você com você
E os outros vão te apoiar
A se unir ao exército de zumbis
Terapeutizados
Uma vida uniforme
Para pessoas que não se amam
Não se odeiam
Nem se importam
Não choram
Nem protestam
Não se indignam mais
Elas apenas desejam a nova fórmula
Que as faça não sentir
Apenas o nada
Nada
Nada
"The horror! The horror!"

domingo, 18 de julho de 2010

Miojo me ligou a meia hora dizendo que um amigo seu estava vindo para o bar.
- Ele e a mulher e a cunhada. Ensinei o caminho, daqui a pouco chegam aí.
- Vem de carro? – não sei porque perguntei isso.
- Acho que sim.
Às vezes não entendia Miojo. De fdp fofoqueiro num dia a divulgador filantrópico no outro. Ele e mais uns tantos. Mesmo a natureza humana sendo de difícil compreensão, ficava sempre achando que no quebra-cabeças de uma parte dessa turma faltava sempre uma peça ou outra pra encaixar.
Eram nove da noite e eu me sentia cansado. No céu, por entre duas nuvens, a lua apareceu amarela como a luz de um candeeiro. Era bonita, mas, por algum motivo, nunca me sensibilizava. Pensei que talvez não estivesse na sintonia certa. Ou, quem sabe, não fosse tão evoluído quanto a maioria. Bem possível que sim.
Depois que Miojo desligou, fui lá dentro, peguei três mesas, doze cadeiras e armei tudo na varanda. As mesas tinham manchas de cerveja e algumas cadeiras também, marcas de cigarros apagados, arranhões. Um tanto da culpa era minha, por simples desleixo, outro tanto pelo sadismo de uma parte da clientela. Se estou pagando, eles pensam, faço o que der na telha... Sempre existiu uma espécie de banda podre em todo lugar, mas a verdade é que eu andava de saco cheio de certas coisas, sobretudo dos bêbados exagerados e vulgares que viviam a fazer besteiras, achando que com isso se afirmavam como malandros, e, no dia seguinte, além de não lembrarem de nada, ainda por cima diziam que eu imaginava ou inventava coisas. O pior é que eles, geralmente, possuíam um poder tão grande de convencimento que, no fim das contas, quem acabava como o único culpado por toda a m... que faziam era eu. De qualquer forma, ainda resistia: forrei as mesas, limpei as cadeiras, fui até a cozinha e passei algumas cervejas da geladeira para o freezer, em seguida coloquei um cd do Otto pra tocar. Otto sempre agradava a mulherada. Depois disso sentei-me num dos bancos da varanda, acendi um cigarro e observei os carros subindo a ladeira.
Algum tempo depois o telefone tocou novamente. Era Altamiro querendo saber se o bar estava com movimento.
- Ninguém – respondi.
- Ninguém?
- É.
- ... Talvez dê uma passadinha por aí mais tarde.
E desligou.
Altamiro era outro que quase sempre deixava uma peça pra encaixar. Não pelo fato de que, provavelmente, não apareceria, mas porque vivia nessas de que era muito meu amigo sem, no entanto, ter intimidade o suficiente para isso. “Dia desses te dou uma vodka importada que ganhei, custa uns R$ 100,00”. E a pior coisa que poderia acontecer seria ele trazer essa tal vodka, justamente por eu não ter nenhuma. Talvez tivesse que aceitar.
A lua já estava afastando-se das nuvens e ganhando espaço quando escutei o barulho de um carro estacionar. Meia hora havia se passado e eu não dera conta. Talvez fosse o amigo de Miojo, com a mulher e a cunhada. Fui correndo até a cozinha, troquei o disco que já estava para acabar e me debrucei sobre o balcão como se a vida estivesse fácil e tudo sob controle. Vi surgir, então, subindo as escadas, a figura de Altamiro, com sua eterna pochete presa à cintura.
- Não pude deixar de conferir esta lua da sua varanda – ele disse.
- Está linda – respondi.
- Adoro ela assim, poética. Olha, separei sua vodka pra trazer, mas esqueci em cima da cômoda. Amanhã eu trago.
- Ok. Vai querer uma cerveja?
- Não. Na verdade, tenho que organizar umas coisas. Apareci somente te ver.
Então se aproximou e me abraçou. Fiquei sem jeito, claro, mas o que é que podia fazer? Depois disso me encararia e possivelmente diria que o meu semblante estava abatido ou qualquer coisa assim, e que, se estivesse com algum problema, poderia me abrir com ele. Eu não tinha nada para falar. Era estranha a situação, mas ele não perdia a pose. Talvez fosse um sujeito mais evoluído que eu. Da lua, pelo menos, ele gostava bem mais.
Depois de uns dez minutos de conversa, foi embora. E eu fiquei com aquela sensação de que faltou uma peça para completar.
Acendi um cigarro e fiquei sozinho a escutar a música tocar. Muitas vezes eu preferia assim.
Quando fui trocar o cd, olhei para o relógio na parede e descobri que já eram onze e dezessete. A noite é como a vida, pensei, passa num piscar e, quase sempre, muito pouco do que queríamos chegou a acontecer.
Recolhi as mesas, as cadeiras, tirei o disco que estava tocando e fechei o balcão. Eu era um comerciante atípico, mas isso não me incomodava. Quando estava descendo a ladeira, vi um casal acompanhado de uma outra mulher vindo na direção do bar. Talvez fosse o tal amigo de Miojo. Eu precisava de uns trocados. O que faria? Quando passaram por mim, quase sem sentir virei o rosto e olhei para o outro lado, procurando talvez algum acontecimento perdido na noite de Ilhéus. Não havia nada, exceto as vozes dos três e a lua, em parte escondida por uma nuvem com formato de uma luva de boxe. Diminuí o passo e fiquei a olhá-la, como se a admirasse, tentando parecer que era um pouco como todo mundo é.

R.M.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

LEAVE ME ALONE (Ou : O desejo de viver em meu mundo)

Punhal e cutelo
Substantivos de algo concreto
instrumentos que realizam crimes passionais
e também terminam vidas tragicamente
dramáticas e demais vividas
eu vejo a palavra
que é a forma de ser realidade
um mundo todo meu significado
e lá, tudo é muito puro
bruto
tudo é muito vivo
sanguíneo
tudo é muito colorido
amanhecer e entardecer
todo o mundo
meu
um tanto egoísta
i´m so selfish, baby
então venha e deite aqui comigo
vamos contar as estrelas que não existem nesse teto
pegue na minha mão e salte para dentro
do universo que existe entre as minhas retinas
e o meu credo

sexta-feira, 7 de maio de 2010

12 hrs. ininterruptas

Se alguém na rua me perguntar
“Você está feliz?”
Eu certamente direi que sim
mesmo quando nesse exato momento
existe uma vontade de chorar matada
no meio do meu peito
e também é como se dois suspiros adiante
um muro fosse erguido
com pedras tão maciças e antigas
de algo que eu me lembro de quando não vivi
algumas flores no cabelo
e um vestido muito diáfano
que me deixasse
corpo cá
e alma do outro lado

terça-feira, 6 de abril de 2010

Ando meio cansado de gente, sobretudo dessa gente chata que se acha grandes merdas, empina a porra do nariz e não assume o que diz, ou o que faz, e que acha que a melhor forma de levar a vida é fingir que está numas de evolução, de consciência e toda essa conversa teatral de que o certo é ser legal e democrático - embora, quando convém, essa mesma gente seja bastante rancorosa, amarga e maledicente também. Ando cansado do senso comum, das deduções que viram verdade, mesmo nascidas de mentes cujo raciocínio lógico seja nenhum, cansado desse discurso Che Guevarista sobre valorização dos direitos humanos, a luta pelos altíssimos ideais, discurso esse que é datado e de fachada e que só serve para mostrar que a pessoa não entende nada de direitos humanos, tampouco de Che Guevara, e que simplesmente não dá a mínima para o que pode acontecer com as classes mais baixas: um suspiro, no máximo, quando o morro deslizar; ando cansado da falta de esforço e das desculpas que dão para não se esforçar, cansado de piadinhas, de gente que se acha o máximo sem ser, o tal engodo artístico – “eu digo que você é bom, você diz que eu sou bom também; mais tarde a gente toma umas brejas, cria umas gírias e consegue umas subvenções”. Cansado de oportunistas, xepeiros, aproveitadores, de gente que usa discurso pronto pra se dizer bem resolvida, de gente que não pára de dar opiniões sobre a sua vida, mesmo sem você pedir (ou saber). Cansado de quem não ama, mas se aproveita do amor alheio para sobreviver...
Cansado e de saco cheio.
Hoje não tem frase bonita.
Moral da lição
?

R.M.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Veja,

eu só tenho essa vontade de chorar. Eu não sou mais criança e durmo de luz acesa. Eu sou adulta e gostaria que você me colocasse no colo. Eu sou mulher e gosto de comer pipoca no parque. Eu sou criança e tenho tantas responsabilidades, e elas não param de crescer.
Em determinados momentos do ano é possível colocar sua mão em meu peito e atravessá-lo. É porque eu viro como um espectro e sombra, um sonho de mim mesma, uma reinvenção. Daí eu pego em sua mão e você pode atravessar a carne e o músculo e procurar o pequeno beija-flor asmático. Ele tanto bate, tum-tum-tum, quanto tosse pigarrento, cof-cof-cof, culpa dos cigarros que nunca fumou.
Você se assusta, larga o pequeno pássaro um tanto quanto sem jeito, e ele fica sem graça em sua falta de perfeição e beleza. Logo ele, que devia ter tanta graça, agora nem sabe direito se é pássaro, se é vida, se é amor, se é vazio, se é o que é que se é.
Faz assim, dê a volta, como se o mundo fosse essa avenida até o seu fim, e de lá grite meu nome para que então eu tente ouvir: Entre todas as pessoas, que falam e esquecem, entre todos os carros que não têm para onde ir, entre todo esse caos que é o mundo às 9 da manhã, eu ainda desejo te ouvir.
E me diz, por favor, você que já andou o mundo e chegou até o fim, se é verdade que existem monstros horríveis aí, ou se eles estão todos atrás de mim, no meu quarto, no meu armário e embaixo da cama.
Diga logo, me ajude, eu não consigo te ouvir, o pássaro se assusta e pode me levar embora, eu tento pegá-lo e não consigo.
Hoje eu sou de carne e músculo.
Tum! É só um carro que atropelou a vida.

terça-feira, 9 de março de 2010

ESCONDERIJOS DE VIVER

Foi um modo de aprender a viver. Alice gostava de se esconder. Pregava peças nos pais quando se ocultava nos lugares mais inesperados da casa. Com os amiguinhos brincava de esconde-esconde e era a campeã entre todos. Um dia, a brincadeira tanto se estendeu que a mãe de Alice chamou o guarda da rua para achá-la. Após 4 horas, com a mãe quase arrancando os cabelos, Alice fora encontrada escondida dentro de um diminuto espaço entre o chão e a pia da churrasqueira do vizinho. E tão acostumada a se esconder, Alice chegou a dormir em posição de contorcionista e, quando acordada pelo desespero de todos, sorriu e achou tudo muito engraçado. Ela não sentiu medo de se perder.
Foi então que ela descobriu que ao se esconder ela também poderia se perder. E que isso poderia ser tão bom porque depois ela poderia ser encontrada. É assim que se aprendem as coisas verdadeiras: Sem pensar, sem livros, cadernos, professoras, sermões de igreja e de pai.
Alice era toda pequena, de forma que se esconder e se perder era muito fácil. A mãe por muitas vezes perdeu Alice no supermercado e, quando a encontrava, ralhava com a pequena. Isto porque a mãe acreditava que Alice havia se escondido, quando, na realidade, a mãe apenas a tinha perdido de vista entre tantas gôndolas e pessoas.
Foi aí que Alice já não soube mais distinguir o que era “se esconder” e “se perder”. E quando adolescente ainda tão pequena e frágil - a menor de todas as garotas da escola - Alice sabia fugir das maldades e do tédio escondida e perdida em seus pensamentos.
E também Alice descobriu a mágica de ficar sozinha entre tantas pessoas, porque ela aprendeu a se esconder dentro. Ela percebeu lugares secretos de sua alma que quando tocados deixavam-na tão bem escondida que chegava a ficar invisível. Ela até testou nesses momentos sua invisibilidade encarando desconhecidos na rua que jamais lhe devolveram o olhar. Ela estava escondida e perdida dos demais, ninguém poderia vê-la, e ela estava em sua própria paz.
Quando os pais de Alice se separaram ela tinha 17 anos e ficou invisível por quase 1 ano. A mãe e o pai separados olhavam através de Alice, sempre, e ela poderia até fazer careta ou chorar de tristeza que eles jamais perceberiam. Foi durante o colegial, e Alice conseguia ser invisível durante as aulas e as provas. Nessa época, Alice freqüentava as salas de cinemas de filmes estranhos, bibliotecas e sebos. Nesses lugares ela era tão invisível que a sua invisibilidade se comunicava com outras.
Com o passar do tempo, Alice então notou que outras tantas pessoas também eram invisíveis. Isso a assustou no começo, afinal, nunca ninguém notara seu dom, e deixar de ser isso tão secreto parecia trazer à tona alguma fragilidade de viver.
Mas agora Alice já é adulta, e terá de encarar o fato de que é tão invisível quanto os que a cercam. Alice está maior e já não pode se esconder entre o chão e a pia. Alguma lição está por vir, e Alice me confidenciou que está confiante.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Cidade Fantasma

Toni, Toni, Toni...
Óh, meu Deus!
Óh, meu Deus!
Toni...
Suor. Suor.
Toni debate-se na cama encharcada de suor. Virá-se, encolhe.
Moulin Rouge destruida, ele pensa, sonha. Está sonhando?
Putas.
A cidade destruída, em escombros. Toni, Toni. Alguns centímetros de pernas femininas, logo acima dos joelhos. Louise Joséphine Weber dançando para ele. "La Goulue" , A Gulosa. Veludo. Vermelho encarnado.
Toni, Toni... O corpo em suor, desmanchando-se. Mulheres vasculhando a cidade, entre os escombros. Toni..., elas gritam, chamam. Querendo destruí-lo, aprisioná-lo. Só restaram elas, mais fortes que as baratas. Nenhum homem. Querem destruí-lo. Sede. Amarrar-lhe as mãos, pendurá-lo e açoitá-lo. Toni, Toni. Elas reviram a cidade destruídas, pernas a mostra, como as dançarinas ousadas em seus movimentos de cancã. A cidade destruída. Mais fortes que as baratas. Ele acorda gritando, o corpo encharcado, o coração sobresaltado como que esmagado por cavalos.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O TAMANHO DO AMOR

O amor não tem tamanho, simplesmente por ser a dimensão
que tudo abriga no mundo

O amor é igualdade, ele nada exclui
ele não pode ser melhor ou pior
pois é incapaz de julgar

Não sabe o amor o que é
começo, meio, ou fim
ele já é antes
como a primeira nota do Universo

Se é amor
Não é amor para ser
é tudo contido
no amor
O amor é a forma
o conteúdo

Assim, o amor não é chama
que se apaga com o primeiro vento
mais forte
O amor é o forte
e se somente chama
certamente há de ser outra coisa
entre as almas

Porque o amor vive
sempre
naquele que sabe como o é
O amor esclarece
O amor acontece
O amor amanhece

É coisa de quem se vive
Vivo
De quem se entrega
De quem não nega
De quem não se apega

E o amor não há de ter tamanho para ser tudo o que é.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

no sitio da familia

as noites eram sempre muito escuras, lembro somente do cheiro do querosene e da porra dum grilo que não me deixava adormecer. eu pensando no dia, nas pessoas que vira, numa frase ou outra que disse ou escutei, mas o sono só vinha mesmo quando começava a imaginar sacanagens, eu comendo alguém que, na prática, seria quase impossível de se comer - a mulher de um tio, uma prima mais velha, bem mais velha, umas dessas que já sabiam de cor e salteado o ofício de foder. então os olhos iam fechando, os pensamentos se embaralhando e tudo virava amanhã.
nessa época eu falava menos, mas acreditava mais. a existência prometia ser algo sensacional.

r.m.

domingo, 29 de novembro de 2009

APOTEOSE APOCALÍPTICA

Eu adentro os escombros e gosto de vasculhar por ali quando há ainda o calor vago de uma vida de outrora. Eu gosto quando a poesia se faz fora de rimas e versos contados; quero-as escondidas de maneira vaga, como em marcas de batom de copos desconhecidos e nos livros de segunda mão dedicados sem reconhecimento do outro. Talvez eu não espere por surpresas ou testemunhe a beleza vulgar e desejada; eu quero a força de limpar a sua sujeira, seus rastros e vestígios, como a cúmplice serviçal; e na dor da carne, no alívio do refúgio, eu encontre respostas sem perguntas, paz de justos e infelizes; toda aquela vida lá, aquela que ninguém quer sonhar.
Eu
sou
somente
viver
sabendo que tudo
é contagem de fim

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Saudade

Eu deixo a porta da cozinha aberta. É pra você entrar. Puxo a cadeira e sei que você também perdeu. A cozinha tem essa luz embaciada e algumas sombras engraçadas. Ouço o som da luz fluorescente, do motor da geladeira e alguém cantarolando no apartamento ao lado. O cigarro queima e todo o apartamento parece me expulsar para antes de tudo. Eu fico acuada enquanto te aguardo. A porta semi-aberta. Outro cigarro e nem gosto tanto de fumar. Talvez eu coloque água no fogo e te sirva um café. Posso deixar uma música tocando na sala. Alguma coisa que nos traga de volta. Eu ainda não entendo que há outra vida além daquela. Não fui à manicure e me arrependo. Gosto quando é vermelho. Veja bem, queria ter essa conversa melhor. Mas tenho de ser honesta: Não consigo. Apenas os signos e as palavaras mais que dispersas: Assim como o vento, o afogado, o perdido, o sentenciado.

então eu digo sobre o buraco,
sobre pessoas estranhas que não entendem
juventude equivocada
pouco tempo para apenas um
tanta história e um só momento

e eu ainda sinto a sua falta

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

ESTANQUE

Veja bem, eu quero culpar o mundo por essa dor, que nem 400 mgs de carbamazepina conseguem contornar. Eu quero dizer que é esse tempo estranho, sem sol e sem ar, que gela meus ossos, apesar do casaco quente, bonito e caro que uso. Sim, eu quero te arrastar junto para o meu buraco, só porque você meu ouve tão compenetrado nessas horas. Então eu disse "mamãe, somente essa vez, me ame!". Ela virou as costas e atendeu o telefone, e eu enfiei um garfo na perna e só consegui dormir quando o sangue estancou. "Você me acha louca?" Nunca ousei perguntar, eu fico com isso entalado na garganta, e grito baixo, xingo alto, ando rápido, tomo café e sorrio de uma forma debochada para as pessoas na rua.

Essas novidades tão modernas só me fazem descrer ainda mais na raça humana e na sua salvação, daí eu entro na igreja bonita da praça da Liberdade - parece uma gruta perdida - e lá olho aquele Cristo sofrendo e só posso dizer "Hey cara, isso vale tanto a pena assim?" E, claro, ele não responde, nem responderá, apenas sangra. Eu fico com raiva e coloco o ipod no talo, até não ouvir sequer mais um som do mundo, e fico imersa naquela dor que é revolta, medo, indignação e, sobretudo, um amor tão grande que não tem colo para chorar e se aninhar.

Daí eu, sei lá, nem sei como escrever essas coisas que somente a alma vive. Eu sei que sinto saudades de algumas pessoas, mas elas já morreram. Fazem parte das cinzas que depositei no mausoléu das lembranças desnecessárias. E eu até gosto disso. Estou livre demais. Só espero saber o quê fazer dela agora.

Alguma sabedoria devo ter adquirido na caminhada até aqui.

Olho ao meu redor, praça da Sé, 18:30. Os sinos tocaram e um dia já é findo. Eu quero sentar nessa escada e perguntar para o cego pinguço se tudo ficará bem.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

CASA NO CAMPO


Babilônia
big city
é esse agito
contínuo, novidade
i like it
but



às vezes eu ainda sonho com a casa no campo
rock´n roll nas montanhas
relógio lento na sala
enquanto o sol caminha e deixa a vida
com sabor de mel, café torrado e bolo recém-assado


eu sou de sampa
e ainda troco essa roupa
dura e cinza
por algo bem leve
que balance com o vento
e tenha cheiro de mato molhado
e amor de se levar até as últimas rugas
and "what wonderful world"
the end

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

DEVANEIOS PARA UM FERIADO

Eu só decidi manter um grande segredo. Então eu acordava de madrugada como se fosse dia claro, saía e respirava o ar que descia gelado e novo das montanhas. Acompanhava o sol e de certa forma participava da criação do mundo. Era o que então eu pensava, sorrindo discretamente, enquanto olhava o verde, o azul, e uma penumbra dourada que transbordava pela janela da cozinha e fazia o bolo de mandioca ficar bronzeado.

O cheiro do café tomava a manhã e desaparecia lentamente. As abelhas, as flores, tudo pareceria só meu, criado por mim e por alguma outra coisa também mágica do universo. Caso eu ainda estivesse sonhando, parecia muito real. E quem poderia me dizer o contrário, se eu estava sentindo e vendo toda aquela vida muito honesta e calma por todos os meus poros e vivia a paz?

E ouvia alguns bichos que pareciam ensaiados, mas também tinha algo de improvisação, quando o besouro pousou no livro, e me assustei, e todos riram. Eu também.

Era alegre, morno, com cheiro de mel e café, cerveja gelada, um pulo na piscina, leve arrepio, cheiro de grama cortada, sorrisos de interior, música e nostalgia, talvez alguma confissão sobre o invisível.

Daí eu sei que gosto de ficar só e quando perto dos amigos mais queridos percebo algum privilégio em manter-me fiel à verdade da vida, que mesmo dura, nos brinda com momentos tão completos que vale então tudo.

O resto é só a vida mesmo, vai compreender... .

domingo, 16 de agosto de 2009

Looser

Eu perdi o prumo
a linha
o dom com as palavras
mais bonitas
as deixei nas sarjetas
outra vez,
toda a esperança sorrateira
os sonhos inebriantes
decaíram como heróis que nunca existiram
e a lucidez catastrófica
reapareceu
por detrás desse verniz falso
“o teu nome é caretice”
e às vezes é fluoxetina
e tantas outras drogas
pra gente morrer e continuar vivendo
e agora que eu morri, desejo viver
e morrer, morrendo
i´m so confused, baby
whispering
take care...
please
é o preço da escolha

terça-feira, 4 de agosto de 2009

NO ME GUSTO MAINSTREAM

Eu te quero todo
lado B
Não gosto daqueles, tipo
top 10
mais vendidos
prediletos
essenciais

Eu te quero todo
Do jeito que ninguém
viu ou ouviu
novo e secreto
que devo descobrir
deliberadamente

FUCK OFF!

O meu corpo é humano
de tecido vivo, vasos,
sangue muito vermelho
pulsante
dança o pensamento
sem nunca desejar ser único e parar
e também tenho cabelo nas ventas
minhocas que tartamudeiam minha cabeça
e daí eu fico toda gente demais
e sinto extremos ao longo do dia
e me recuso a viver como lagartixa
na frente ociosa da tv noturna
depois de trabalhar de forma enfadonha
e dormir ao lado de um corpo
tão morto
todas as noites
as ventas queimam minhas idéias
que pulsam meu sangue
e derramo lágrimas carmim
sejam elas de alegria ou dor
como um gozo dissolvido
em suspiros em seus ouvidos
sinto tudo de uma vez, só

E o resumo da ópera da minha vida
é que eu nasci pra viver
e vivo pra morrer
todos os segundos do dia
So, fuck off!

sexta-feira, 31 de julho de 2009

OLHOS ESFUMAÇADOS DE NEGRO

Ainda não é tarde
e já poderia reconhecer
nas sombras
os rostos que eu deveria lembrar
e estranhamente não os recordo
pois não posso dizer
por onde andei
Maybe

I have a secret

quarta-feira, 29 de julho de 2009

QUANDO NÃO PAROU MAIS DE CHOVER

Chove pedra
O céu deseja a morte
em trovoadas extensas
clarões que apenas fazem
a noite mais negra
e meu pesadelo
é você que me persegue
só, me resta a aflição
enquanto fico trancada
na pequena sala
grilhões pesados na imensa porta
eu me escondo de você
claustrofóbica
e a solidão entope minha boca
de um bolo azedo
you´re so sour, baby

Mas eu acredito estar salva

domingo, 12 de julho de 2009

OUTRA PRA VOCÊ (Ou só porque eu não te conheço)

Todos os comuns
They do
Juntos
Festas
Supermercados
Sorvetes no quiosque do shopping
Filhos mal educados
Vícios insuficientes
Cafeína, cocaína, codeína
Não exatamente nessa ordem
Existe a sua falta
A ausência
A solidão por entre a gente
Do poeta de muito tempo atrás
Eu me acho tão diferente
But I do too
Versos de rimas primárias
Precárias
Tão comum
Mente

quinta-feira, 2 de julho de 2009

LA REVANCHA DEL TANGO







"Primeiro dia. Sem música, apenas um quase silêncio. Melancolia. A Cidade Fantasma é uma merda. Assim continuará. O maior símbolo da Cidade Fantasma é um avião numa praça morta.O apartamento é minúsculo e sobre o sofá está um maço de cigarros e o livro Crazy cook, de Henry Miller. O galo louco, o pau louco, o cacete louco de Miller. Um tempestuoso triângulo amoroso que leva o escritor ao desespero.Concluí que não gostaria de estar na pele de Henry Miller. Passo a vida evitando mulheres loucas, mas nem sempre consigo.Lembro de um tango de Astor Piazzolla, de mulheres usando leves vestidos que deixam escapar longas e lindas pernas quando dançam. Lembro das mulheres que não conheci. Abro a geladeira para pegar uma bebida. Encontro apenas uma garrafa de Coca Light. Como Juliana consegue beber isto? Tento beber um gole, desisto, pego o maço de cigarro sobre o sofá e espio a cidade lá fora enquanto a suave brisa da noite lambe meu rosto. Fumo um cigarro enquanto penso nas coisas e tenho vontade de usar um chapéu panamá".

quarta-feira, 1 de julho de 2009

CAFEINA + COMPRIMIDOS

para quem não deseja
dormir
sonho acordada
novamente
pela 1ª vez

é quando vejo
do alto do viaduto
os carros passarem
e acredito poder-voar

é uma esperança bem assim
que carrego no peito
do beija-flor
asmático

quarta-feira, 24 de junho de 2009

14:hs | Tarde

Algumas folhas de jornal grudaram-se umas nas outras como asas de borboletas encharcadas. Borboletas bêbadas que tentavam voar e zanzavam trôpegas até encontrarem um poste, e ali ficarem grudadas. Eu observava a cena através da janela de um pequeno apartamento que eu alugava num velho prédio no centro de Porto Alegre. Lá fora despencava uma tormenta infernal. O céu desabava, a água da chuva inundava a cidade formando corredeiras junto às calçadas. As folhas de jornal escaparam das mãos de uma mulher gorda que se movia com a dificuldade de um elefante lodoso. Ela ensaiou uma corrida desengonçada, cuidando para não esborrachar-se no chão. Escorregou um pé, a perna direita, curta e grossa abriu-se como um raio. Os braços moveram-se rapidamente lembrando os de uma marionete, com a ajuda deles a mulher gorda recuperou o equilíbrio e então parou sob a chuva tentando refazer-se do susto enquanto o jornal se desmanchava. O guarda-chuva transparente mal protegia o corpo imenso da mulher.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Quando as coisas simplesmente não têm explicação

Eu ando bem feliz, e eu acho que o nome disso é alegria porque tem uma constância na coisa. Explicando: Meus dias estão lineares, sem descidas automáticas até o inferno. Talvez, eu tenha perdido noção do caminho até lá. Vejamos na contagem do tempo passar.
Tenho me perdido em pensamentos do micro para o macro, como, por exemplo, o jeito único que observo a luminosidade dessa tarde gelada e como essa beleza apenas é um composto químico e físico que formam tanto a matéria do céu quanto a que pertence ao meu corpo.
Tenho uma experiência espiritual-racional e tudo fica tão grandemente simples, que os meus problemas cotidianos e humanos mal cabem na sessão de terapia. Aliás, a última sessão foi uma grande conversa sobre o absurdo de se compreender o mesmo objeto analisado sob diferentes perspectivas. Daí que eu penso que o "serumanu" se perdeu mesmo. Afinal, ele valora mais o seu do que o outro, mesmo quando o foco é o outro.
E daí,claro, conversando com minha mãe identifico que a filosofia é uma ciência do pensamento, of course, e por isso mesmo absolutamente distante da praxis. Certo é que alguns filósofos foram seus pensamentos - e vice-versa, porém, acreditar na filosofia como uma realidade é uma bobagem utópica cheia de ingenuidade e paixão.
A filosofia é bem um instrumento, o meio para um fim individual, não o fim em si mesma.
Tá aí a grande arte da parada. É essa transmutação do macro para o micro, do conhecimento para a experiência, e assim vai... .

sábado, 9 de maio de 2009

DO FIM

Porque você não vai
De uma vez, SAI!
Sim, e bata a porta
Da rua encha a boca
E grite: Puta!
Todos já ouviram menos
Do mundo
E mais do desespero
Mas, vá e não volte
Que seus passos sejam ecos
Do amor, sussurros dos lençóis
Que o quente de seus beijos
Apenas uma lembrança antiga
Como o alento de seu sorriso
Apenas um esboço no tempo perdido
E na morte das tardes
As mãos se buscavam cegas
Para entender que de dois se era um
Mas agora que tudo é partido,
Quando nos partimos,
Você está partindo
Os pratos foram na parede partidos
Eu fiquei aqui parte-ida


Porque você não vai
De uma vez, SAI!
Sim, e bata a porta
Não volte
Nunca mais me toque
Fique longe
Do corpo e da mente
Nunca existiu "a gente"
Ah! Me deixe vazia
Sem lembranças
Sem despedidas
Idas
Parte
Nossas
Vidas
Vai!

quinta-feira, 30 de abril de 2009

ELEGIA A SOLIDÃO MODERNA

E eu aqui pensando, não gosto mesmo de coisa muito pessoal. Em primeira pessoa só falo de outros, mesmo que eus, ainda assim não é aquele de hoje.

Agora se isso faço – veja o primeiro tempo verbal conjugado - porque quero é meter meu bedelho nesse mundo estranho. Eu vou até sentir falta do sertanejo brega que canta a saudade “do seu amor quentinho”, ou aquele papo-cabeça canção de quem se sente sozinho.

Tudo pra dizer que eu quero mesmo é cada vez mais enlouquecer e me enfiar numa caverna com poucas coisas e jogar minha própria merda no chato que ousar passar por lá com toda essa parafernália moderna.

É Orkut, Twitter, celular-computador, computador-casa, casa-orkut, fotolog-amigos, eu já não entendo mais nada, essa coisa dessa gente falar tanto sobre coisa alguma. E toda essa especulação sobre a vida alheia só poderia tapar dentro de cada um, sei lá, quem sabe, algo do tamanho de um buraco negro existencial.

E a cada século o ser humano dá mais um grande passo na sua eterna cagada de não se conformar com sua própria insignificância perante o Universo e a magnitude da Vida, e decide criar alguma brincadeira infantil e coletiva para distrair-se da consciência individual e cruel.

Eu, como sempre digo, – e nem eu sei quem é essa aí que Vos fala – prefiro é ficar mesmo na minha vidinha besta pra caraleo, sem muitas coisas legais pra contar, sem muito me enfeitar e sem aprender a fazer bico.

E também, sem ser uma pra contar.

domingo, 19 de abril de 2009

APATIA A CABO

Pelo telejornal
do canal pago
Assisto o mundo
Aperto a função mudo
e tudo permanece ruindo
em estrondoso
SILÊNCIO!

sábado, 11 de abril de 2009

TEMPOS MUITO DEMAIS MODERNOS

Ele chegou e enfim consegui respirar novamente. O dia todo fiquei com medo. Permaneci escondida na sombra que os objetos faziam pela casa, conforme o sol cumpria sua rota astronômica. Chorei quando ouvi ruídos próximos da porta e pensei que talvez eles estivessem aqui para me levarem embora. Uma mosca estranha também tentou pousar muitas vezes em meu cabelo e fui tomada por um infinito terror. Por isso, quando ele entrou em casa eu respirei e sabia que não estava mais só e podia ser corajosa e ir até a cozinha tomar um copo de água. Ele parecia muito cansado e cumpriu com seus movimentos ordinários. Deixou a pasta sobre a mesinha próxima da porta. Tirou os sapatos e os colocou embaixo da cama. Tirou a roupa, e deixou-a sobre a cadeira. Depois tirou a minha. Alguns minutos depois levantou e foi ao banheiro. Eu fiquei olhando-o fazer xixi ainda deitada na cama. Senti ainda algum receio da vida estranha que estava vivendo sob a minha janela e pensei que talvez aquele ar de outras pessoas pudesse me fazer algum mal. Soltei um gritinho abafado e enfiei a cabeça embaixo do travesseiro. Ele voltou, abriu o zíper que descia desde o osso esterno até o umbigo, e retirou de lá os órgãos que ainda lhe restavam: o estômago, fígado e intestinos. Deixou-os dentro do jarro ao lado da cama e ficou ao meu lado dormindo com os olhos abertos. Eu enfiei a mão no buraco do meu peito, agora eu podia, com ele velando o meu sono, sim, eu conseguiria, e senti o passarinho que vivia entre os meus pulmões. Era um pequeno beija-flor asmático que, quanto mais as asas batia, mais perto da morte se aproximava.

segunda-feira, 23 de março de 2009

... O retorno do sentir

E a distância da sua existência me ensinou a solidão maior. Por entre todas as pessoas e lugares, estou encarcerada pelas lembranças do que acredito que foi bom. Eu nem bem sei se é real toda essa falta de você. Eu só sinto essa enorme muralha que emerge do chão e cresce sobre o mundo e não sou capaz de sorrir de dentro. Eu poderia te carregar para algum lugar melhor longe dessa gente feia e sem graça. Eu gostaria de nos proteger desse final de tudo lento e decadente dessa cidade. Eu não compreendo muitas coisas, e cada vez mais a sabedoria não me pertence. E tudo é esse sentimento estranho, como se eu fosse capaz de voar, mas meus pés estivessem atados ao chão.

E só me resta então a angústia e esse destino cego, essa vida sem saber, aguardar o acontecimento maior, o evento predestinado, como um novo nascimento em um corpo já muito antigo. Com grandes asas leves alçar vôo, sentir a poeira do chão subir, e buscar você lá de cima. E fugir para alguma terra alta, distante disso tudo, com o horizonte dolorido e livre, sentiremos o aperto no peito que só a felicidade transbordante da esperança real é capaz de proporcionar.

E eu só peço, veja bem, é tão pouco, meu Deus, é quase nada, que você me conforte e em silêncio compreenda o incompreensível junto de mim com todas as palavras que só o silêncio maior produz.

“Veja só - suspira uma brisa que leva levemente os cabelos e arrepia calmamente na alma – estamos no coração da vida, soerguidos pelo mistério, nada aguardamos, além dessa sensação de algo que está realmente em seu lugar. ”

Agora estou de volta com minha caixa de bagunças demasiadas humanas: www.caixaderascunho.blogspot.com

terça-feira, 3 de março de 2009

Big Mess

Eu só queria te dizer
Eu nem sei bem como
Tudo se perdeu
E gostaria que alguém explicasse
Uma formula secreta
Que resgatasse
Os momentos mágicos
Algo de bom
Entre nós
E agora distantes
Talvez eu acredite
Que os detalhes
Não fossem importantes
E só restasse
Os finais de tarde
As alegrias
Esperanças
De uma vida mais
Completa
Que não soubemos
Levar adiante
Será que há
Sabedoria no mundo
Para dizer
Eu e você
O quê deveria ser
Melhor?

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Todo mundo fica triste quando chove

Eu olho da janela embaçada a tempestade que se forma e o vento que pode levar um bebê de dois quilos embora.
Fecho a janela e o fim de tarde abafado cola a roupa em meu corpo. Acendo um cigarro, e penso que parei de fumar "pero no mucho". Sou a Deusa do Pero no Mucholand. Feliz “pero no mucho”, trabalhando “pero no mucho”, satisfeita “pero no mucho”, ainda te amo “pero no mucho”.
Por aí vai, e começa a chuva, despenca de uma vez, os prédios encobertos pela névoa branca.
A fumaça quente do cigarro, o calor úmido pegajoso em meu corpo, os pensamento lentos me enterrando e eu sem forças para jogar a terra fora.
É isso, quando eu olho a chuva imagino todas as pessoas do mundo que por um segundo olham a água descendo para a terra e sentem-se mais sós, infelizes, ou simplesmente perdidas.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

balcão

Ela colocou o copo em cima do balcão e disse:

- ainda gosto dele. Mais até do que antes.

O nome disso, pensei em dizer, é cantina do vale. mas acabei não dizendo.
Ela colocou uma dose, bebeu, em seguida encheu o copo outra vez. Olhou para mim, fez que ia dizer algo, mas então sorriu alto, muito alto, e desceu as escadas, o cabelo caindo de lado, o andar meio trôpego e um cuidado enorme com o copo de vinho que ia levando.

RM

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Eu quero voltar mas o mundo não deixa

É começo de ano. Aquela vida janeiro, de esperanças exponenciais, e confesso que isso me deprime mais. Eu acho que perdi a mão e o sentido maior das frases. Eu deixo as flores murcharem longe de mim, não quero cuidar. Alguém me cobra atenção e eu desejo esquecer de tudo.
Eu ando cansada e sei que não faço nada. Eu gosto da solidão e da minhas peculiaridades que me tornam um ser recôndito e estranho. Eu ando pelas ruas do Centro e não procuro respostas.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

depois que a Lúcia morreu

Dia 13/10

Roberto, meu querido, acabei de chegar de salvador. Não sei o que acontece, mas a cada dia me sinto mais estranho naquela cidade. Muita gente, muitos carros, muito barulho, e tudo é tão caro, tão longe...desta vez, fui para dar um jeito na situação da Melissa. Na verdade, fui para ver como é que ela tá mesmo. Parece que se desentendeu com a dona do pensionato em que está morando e cismou que não quer mais ficar por lá. Coisas da sua afilhada, você conhece bem. De uma hora pra outra,k sem avisar, ficou cheia de opiniões. Os filhos crescem, né. De qualquer forma, se a Lúcia estivesse viva, garanto que situações assim não aconteceriam. Consegui um outro lugar, mais caro um pouco. Falta ela dar uma olhada pra ver se aprova. Talvez na próxima semana. Quase não tem tempo, a coitada, vive na casa de colegas, fazendo trabalhos. Aproveitei que estava na capital, como a gente falava antigamente, e fiz uns exames. Recebo pelo correio quando estiverem prontos. Modernidades. Desconfio que não estou muito mal, só essa tosse que incomoda, mas é sempre bom dar uma checada. Bom, tô ligando mesmo é pra lembrar daquele nosso esquema de domingo que vem. Tá de pé ainda?

Dia 15/10

Roberto, você não imagina quem apareceu aqui em casa hoje. Dona Miriam. Está bem acabadinha, mas a memória continua boa. Falou de mamãe, dos lençóis de retalhos que as duas faziam na varanda da nossa casa e de como nós aprontávamos naquela época. Está morando com uma filha, acho que a mais nova, Soraya. Encontrei com as duas no supermercado. Não esperava que aparecesse. Mas talvez tenha sido bom. Gosto das reminiscências. Quando ia embora, me abraçou e disse que eu estava a cara de papai. Achei estranho. Sempre me pareci mais com mamãe, era o que diziam. Não importa. Estou aqui me preparando para para ver o jogo do Brasil na tv. Depois que mudaram aquele zagueiro, parece que a coisa melhorou. Mas ainda não tô satisfeito. Hoje em dia parece que jogador não tem mais amor à camisa. E o esquema de domingo? Dá um retorno.

Dia 17/10

Roberto, sou eu. Tenho pensado muito nessa coisa de estar parecido com papai. Mesmo que eu parecesse mais com mamãe quando novo, é possível que, com o passar dos anos, certas feições que herdei de papai tenham se acentuado. Há muitos casos assim. Sei mesmo de uma família que, quanto mais o tempo passa, mais eles se parecem. Fiquei boa parte da manhã de frente pro espelho. Acho que meus olhos são mais puxados agora. Talvez seja problema de vista, não sei. Você deve estar achando essa conversa meio estranha, mas realmente estou convencido de que alguma mudança aconteceu. O que é que você acha? Me liga aí, porra...

Dia 18/10

Roberto, meu irmão, parece que nunca te encontro em casa, por onde é que anda? Tenho uns assuntos para conversar, saber sua opinião. A Melissa ligou ontem de noite. Diz que não quer mais ir para o pensionato que arranjei, vai dividir um apartamento com mais duas amigas. Tentei explicar que a situação está meio complicada, que já tinha a mensalidade da faculdade, mas ela fez um drama enorme, chegou a dizer que eu não a amava e que se a Lúcia estivesse viva iria entendê-la. Eu sei que não, mas não quis discutir. Vou me apertar, mas fazer o quê, não é mesmo? Coisas da vida. Por falar em aperto, viu o jogo do Brasil? Porcaria de time aquele. Se pudesse, mandaria todo mundo pro oriente, lá praquele lugar onde se toma chicotada quando se joga mal. Brincadeira, há,há... mas que a gente passa raiva, isso passa. E pensar que quando éramos moleques tínhamos um orgulho danado dessa camisa. Olha, sobre o esquema de amanhã, queria um retorno seu pra dizer o que é preciso comprar. Tenho pensado muito nessa viagem, mas nunca fui bom de organizar coisas, você sabe, fico apenas imaginando a gente lá, pescando robalo no cais, abrindo a casa velha, olhando as coisas que ficaram e sentando na varanda pra tomar uma cerveja e olhar o rio. Sempre fui meio sentimental, saudosista, você sabe, e depois que a Lúcia morreu fiquei um tanto sem chão. Difícil explicar assim. Sua natureza sempre foi diferente da minha, mais forte, auto-suficiente. Mas não quero te encher com os meus problemas. No domingo, iremos lá, será um dia apenas para matar a saudade. Vai ser ótimo, rapaz. Me liga tão logo chegue em casa, ta? Valeu... ah, outra coisa: Dona Miriam veio ontem outra vez, tocou a campainha durante uns cinco minutos, mas eu não atendi. Não sei porquê. O problema foi segurar a vontade de tossir. Coloquei uma toalha no rosto, mas achei que ela, mesmo assim, estava escutando. Fiquei sem saber se escutou realmente. Se encontrá-la no supermercado, digo que estava com uma gripe ou qualquer coisa do tipo. Bom, era isso. Se puder, dá um retorno. Mas acho que posso ir adiantando alguns detalhes antes de você ligar...



Rodrigo Melo

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Des-geração

Ele acordou sem saber e olhou no espelho. Abriu a torneira e lavou o rosto, mas continuou do mesmo jeito. Nem acreditou. O banheiro parecia a sucursal do inferninho do centro. Era tanta cueca espalhada que ele nem acreditou que eram todas de sua bunda. A escova de dentes amarelada dizia que era hora de consultar um dentista para não precisar de dentadura aos 30 anos. A roupa mais limpa estaria, provavelmente, no fundo do cesto abarrotado. Não sabia se era da azia ou da dor de cabeça, mas precisava vomitar. Dias de ressaca é isso, uma grande vontade de expelir os orgãos internos inteiros na privada. Dar uma descarga e encaminha-los ao rio Tietê, juntamente dos demais dejetos expelidos por todas as famílias sorridentes que atulhavam os parques aos domingos. Quem sabe pedir um transplante mais tarde, viver uma vida de retalhos humanos salvaria o arremedo que ele arrastava pelo apartamento naquela manhã natimorta.

Cigarros, aos montes, atolavam os cinzeiros, assim como os restos de cerveja. Estavam à disposição de algum desesperado que ousasse se utilizar dos restos mortais de noites retrasadas e cansadas. Podia, sim, voltar para a cama e rezar para acordar no paraíso muçulmano de mulheres com olhos rasgados e tez bronzeada, oferecendo-lhe orgasmos eternos. Mas ele era um filho da puta ocidental, de modo que a pós-vida seria uma coisa chata e tediosa com o soundtrack da Enya com diarréia cósmica. Passaria a eternidade dialogando com anjos de pintos pequenos e roliços que nem um viado ousaria utilizar.

Queria telefonar para algum S.O.S. aos suicidas, mais um dos serviços indispensáveis a vida moderna, mas o telefone havia sido cortado. Afinal, ou se bebe ou se paga o telefone. No caso a escolha é óbvia.

Se voltasse para a casa dos seus pais poderia tomar um banho quente com sabonete perfumado, almoçar com talheres em um prato, e arrotar a abundância que ele nunca ousara procurar nos classificados dos jornais. Mas lembrou do que vira no espelho e desistiu, sua mãe sofreria mais um desgosto e enfartaria. Não suportava o olhar de frustração da sua mãe: “Qual foi meu erro?”. Do princípio: Casar com aquele babaca do meu pai que fica com a pança na carroceria do carro aos domingos, lavando os louros da vida burguesa. Depois, ter um filho e achar que ele poderia ser diferente dos demais fracassados dos rebentos vizinhos. Pois, então, mamãe, o seu erro foi acreditar na glória da esperança secular.

Sentiu o gosto do bife a role, mas desistiu, não poderia corroborar aquilo que a senhora de grandes tetas esparramadas sabia no seu íntimo e infinito feminino. As mulheres eram foda. Por isso elas batiam a porta e quebravam pratos na parede. Há até certa histeria, mas ele reagiria da mesma forma se não tivesse a cabeça de baixo tão importante em detrimento de sua sinapse. Achou um livro abandonado ao lado do vaso sanitário que alguém havia dado a ele. Mas os óculos não estavam lá, assim adiaria para o próximo século a leitura de mais uma relíquia da humanidade.

Se ainda tivesse alguma dignidade, enfiaria a cabeça no fogão e asfixiaria. Mas não tinha gás. Pôrra, que merda que ele era afinal?
Bianca Rosolem

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

CATACUMBA

Um pouco viva. Acendo a luz e não abro a janela com receio de sentir gelar ainda mais os ossos. Tomei uma colherada de óleo de fígado de bacalhau e fiquei olhando a geladeira e nada me apeteceu. Deitei embaixo dos cobertores e esfreguei os pés de uma maneira única que faço, devagar, como um embalo ancestral de sono. Ali, o sono chegou enquanto o calor aquecia o suficiente para dormir e párar de sentir o que não sinto.
Acordei com mais sono, sentei no computador e não tinhas histórias para contar. Vazia, oca, minha mente é do tamanho de comprimidos que engulo sem muito questionar. Eu só tenho que me adaptar e controlar.
Controle, acho que é tudo isso.
Então, olhei para a minha rosa ainda botão, caída, nem vivia ainda e já de cabeça baixa desistia. Heroicamente desliguei as luzes abri bem aos poucos as cortinas. Decidi que mesmo se for a tristeza de viver descontralada e fora dos padrões, única e isolada em um casulo solitário, a existência daquela flor ainda merecia vez. Seremos então, as duas, de cabeça erguida, do jeito que se é.
Nem sempre nós salvamos sozinhas.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Mais devagar, ou não.

“As coisas não andam boas por aqui”, ele disse me olhando daquele jeito. Eu o ouvia enquanto fingia colocar ordem na bagunça da sala. Era só uma maneira de ouvi-lo sem envolver-me demais. “Fernando, meu querido, o nosso erro foi querer demais”, eu disse e me arrependi. Era uma grande bobagem e uma resignação decadente acreditar que os sonhos que nos moveram e nos enterraram foram grandes demais.(...)

Queridos o restante do texto está lá no www.blonicas.zip.net

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

APARTAMENTO 12

Uma voz sussura na porta ao lado. Algumas tímidas batidas como se tivesse medo de quebrar algo. Trago o cigarro mais uma vez e mantenho-me em silêncio antes de abrir a porta. Ela não deveria estar aqui, vir aqui. Eu disse pra ela. Logo reconheci a voz que sussurava, mesmo antes eu sabia que era ela, que só poderia ser ela. Eu tinha-lhe dito que não era para ela vir ao Motel.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A vida não é um livro de capa colorida

Vá ler auto-ajuda, conselhos sobre pensar positivo enquanto o mundo desaba em misérias e aos 28 anos seu bem mais precioso é um ipod. A justiça é uma grande mentira, a subjetividade de algum filho da puta que quer se dar bem. A vida tá cheia de parasitas, respirando esse ar infecto e dando esbarrões no metrô para chegar mais rápido numa casa de bosta. Enche a cara, pensa na juventude que nunca foi. Tá fodido, cara. Você pensa em se matar e fulano acha a parada "barra pesada". Eu acho que o mundo vê muita sessão da tarde e revistas com fotos de gente bonita com vestidos da Versace, que na minha opinião são bregas pra caraleo. Ainda um otário que nunca olhou na sua cara quer entender o motivo e deduz que você quer vingança. Quando na verdade você já está tão magoado que não entende o que é amor e se ele pode realmente existir nesse mundo de merda. Aqui só existe vaidade, ambição, egoísmo.
Te conto uma coisa maluca, parei o carro na banca de flores da Dr. Arnaldo e lá eu pedi gérberas amarelas que eu ganhei ainda decoradas. O cara fez do coração. Acho que ele viu lá dentro alguma coisa triste que ele também tem. E desse jeito ele me ajudou e não se sentiu tão só nessa confusão de mundo

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

LA REVANCHE DEL TANGO

Em breve sairá pela Mojo Books (http://www.mojobooks.com.br/),
LA REVANCHE DEL TANGO” de Emerson Wiskow

terça-feira, 26 de agosto de 2008

LICENÇA PARA SER CLICHÊ

As flores estavam murchas e sem água. Eu esqueci mais uma vez. Talvez eu abra uma fresta da janela e mude o cd. O calendário ainda está em janeiro. O relógio da cozinha parou há muito tempo.
Tempos estranhos por aqui. Prozac ou Gugu, uma felicidade idiota nos sorrisos clareados. Conversas de elevador sufocam de perfume francês as sete da manhã. Espremida, minha vida rende piadas no bar e linhas irônicas. Há algo de fantástico nisso, eu acho, me disseram. Nem lembro se foi este ano. Tenho uma pilha de livros para ler e não saio dos sebos da redondeza. Acho tudo muito barato e bonito, basta andar por aí para se ver. Se ao menos eu gostasse de colocar pôsteres no quarto...Mas não, até as fotos eu tirei.
Esquecendo de esquecer, eu lembro cada dia mais. Eu posso dizer “Ô gente chata ducaralho”, mas prefiro pedir uma cerveja e sorrir. Abraço algumas pessoas e penso se elas podem estar realmente vivas fedendo daquele jeito. Tenho milhares de opções mas fico só com três. E ainda quero me livrar destas. Passo o ponto.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

A OBVIEDADE DO AMOR

"Eu pintava as unhas dos pés de cor-de-rosa velho enquanto você colocava as calças. E fiquei olhando você as vestindo, sempre tão do mesmo jeito, que acabei por borrar a unha do dedinho que é pequena e difícil. Porra! Você sempre com tanta pressa e eu ainda com a toalha enrolada no cabelo.Aí você senta com aquela cara de “vai demorar a vida toda, né” e fica olhando para a T.V. Eu passo peladinha na sua frente, andando com os dedinhos do pé para cima para que não borrem, e você apenas move a cabeça para ver alguma gostosa do programa de domingo rebolar. Eu não sei muito bem o desenrolar da história, digo, como todo esse poder do corpo feminino siliconado-rebolativo aniquilou a sensualidade da mulher que anda nua com as unhas dos pés cor-de-rosa. (...)"

Queridos, o restante do conto está todinho no novo endereço que publico, passem por lá: www.blonicas.zip.net

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

PAPEL CARBONO

Eu fiquei sem saber como escrever.
Eu queria tanto ser tocada da sabedoria incomum, para usar as palavras que somente existem em algum lugar, muito longe do todo, apenas o distante pode expressar.
E se você não as compreendesse, eu as imprimiria através de beijos de brasas e fome por todo seu corpo.
E então, derrubaria do céu a chuva fina da madrugada que molha, suave, o guarda-chuva que a alma de poeta não carrega.
Quem sabe tiraria você para dançar aquela música sussurrada e profana que percorre as esquinas e que somente nós ouviríamos.
Eu pertenceria a você dissolvida em seu sangue, em seu gozo e em sua saliva.
E dali eu nasceria todo dia como o sorriso que você marcou no carbono da minha emoção. E saberia.
A sua. Toda sou: Sua.
Nua eu viveria de sua impressão sem pressa sobre meu corpo. Sem pedir para acabar. Sem querer o fim.
Eu derramarei uma lágrima pesada se isto, daquelas de olho que não quer fechar. De algo que não deseja doer.
Do seu amor furtivo, escondido entre os lençóis e cortinas do seu palco, eu guardo o toque e o gosto da felicidade.
Quando longe, esperando o chamar do telefone, meu corpo é como folha avulsa e em branco sobre a mesa. Para, então, ouvir sua voz: púrpura risca para colorir o meu prazer.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

BUNDAS SIAMESAS

(Uma odisséia sobre mulheres de seios fartos e ancas largas)

Parte I

Um dia quente, úmido, abafado e viscoso, a roupa colava no corpo. Até as paredes suavam. Cássia Alessandra, enorme, deitada na cama observava a chuva se formando ao longe. A camisola de gestante grudava no corpo. Ela fechou os olhos e rezou para que suas bebês resolvessem nascer logo. Mesmo que fosse naquele dia, e o dilúvio que ameaçava a terra caísse e levasse todas as casas da rua. Por bem, ou por mal, já não agüentava mais a gestação pesada de duas crianças. Olhou seu corpo disforme e inchado, e da maneira que estava recostada no travesseiro não via sequer o dedão do pé. Apenas enxergava a imensa lua de sua barriga. Estendeu os braços e sentiu o suor escorrer de sua axila, alcançou o copo d água sobre o criado-mudo. Esse esforço foi o suficiente para que a bolsa rompesse e inundasse o colchão. Adelino, o marido, saiu correndo em busca de sua mulher que berrava “vai nascer, vai nascer”, largando a TV ligada e o final do campeonato brasileiro.
No hospital, depois de anestesia, choro e desmaios, cortaram a barriga para de lá tirarem o que chamam na ciência bizarra de xifópagas. Se não bastassem gêmeas idênticas, ainda eram grudadas. E o mais curioso é que as bebês uniam-se pelas nádegas. Melhor dizendo, cada uma tinha sua nádega, isto é, cada uma tinha seu ânus, porém na altura da carne que forma a protuberância chamada “bunda”, quase nas costas, elas estavam grudadinhas. Seu Adelino rezou e pediu perdão; Cássia Alessandra fez promessa. As bebês passaram por cinco minutos no jornal da noite na TV, a mãe chorou e o pai apenas pediu ajuda. O Bairro comovido fez novena e procissão. No final, Karla Adriana e Keila Cristina – já registradas no cartório da região - foram separadas e a nádega comum foi igualmente divida.
O pai muito preocupado com toda a repercussão, logo tratou de estabelecer medidas que atenuassem o trauma que toda a situação poderia infligir em suas meninas. Assim, desde cedo, Adelino colocava sapatos pesados – que ele próprio criara em sua oficina - para que as meninas forçassem a musculatura dos glúteos de forma que essa se hiper-desenvolvesse. Adelino sabia bem como mulheres ‘sem bunda’ eram preteridas na sociedade. Desta maneira, utilizou de todos os artifícios para que nunca alguém na rua apontasse para suas meninas e as ridicularizasse por compartilharem a mesma bunda, pouco restando então a cada uma.
Alimentação rigorosa, com muita proteína, leite, e claras de ovo, ainda exercícios localizados, constituía a rotina das meninas. A mãe nunca mais pensou em ter outros filhos, pois acreditava que seu ventre era amaldiçoado. Foi perdendo o juízo, e terminou no quarto dos fundos, antes a oficina de Adelino, bordando roupas para a Igreja enquanto cantava hinos evangélicos.
Mesmo a mãe ausente e um pai onipresente, não impediram que as gêmeas desfrutassem de sua condição. Viviam de troca com os pais, sendo que por meses eles tomavam Karla por Keila e vice-versa. Assim, era na escola, nas brincadeiras da rua, e mais tarde, nos primeiros namorinhos de mão.
Logo, quando com 14 anos a obstinação de Adelino mostrou seu resultado. Todos os rapazes da rua queriam namorar as Gêmeas Bundanesas, como então ficaram conhecidas. Nessa idade já eram madrinhas do bloco de carnaval e o pai batia palmas, orgulhoso, quando elas desfilavam seus traseiros fartos – 116 centímentros – pelas ruas do bairro em minúsculo biquíni.
Porém, essa aparente conduta libertina do pai não ia além do exibicionismo do predicado das moças. As gêmeas bundanesas desfilavam micro shorts, vestidos e saias minúsculos, mas ninguém podia tocá-las sem expressa permissão. Esse misto de erotismo e proibição criou uma aura mágica em torno das gêmeas. Se não bastasse a sua condição de igualdade física, elas ainda desfrutavam de toda a mítica criada em suas vidas. Cientes de seu poder, elas causaram mais confusão que o comando criminoso que dominava a região.
Brigas, fins de casamento, até morte. As gêmeas bundanesas eram lenda na cidade inteira quando completaram dezoito anos. Na festa, Adelino, incrivelmente feliz, bebeu, comeu, sambou e quando já estava muito cansado sentiu o luto de sua mulher recriminando tanta alegria. Olhou para o quartinho fechado desde sua morte e então teve a impressão de que lá ela ainda estivesse. Cansado, dominado pelo sono, cochilou na cadeira.
Alguns minutos depois chamavam os bombeiros. Adelino morreu de olhos já fechados.

As gêmeas bundanesas, as mulheres mais fartas e ancudas da história da cidade, estavam livres.


terça-feira, 15 de julho de 2008

Corredor e baratas numa noite insone

Meia noite e exatos dois minutos. No Corredor pouco iluminado, apenas o escritor e uma barata que vaga parecendo não ter rumo. Ela encontra uma fenda entre a parede, um pequeno buraco ou passagem para o que pode ser sua moradia e entra. Desaparece. O escritor retira sua chave do bolso e assim que coloca-a na fechadura encontra um bilhete enfiado embaixo da porta. Ele pega o bilhete e lê. "Gostaria muito de ter o prazer de conhecê-lo. Adoraria que você aceitasse tomar um café comigo. Com carinho, Sueli. Apartamento número 12". Com o bilhete na mão o escritor entra em seu apartamento e some. Desaparece. Fica imaginando quem seria a mulher do apartamento número doze.
Apartamento número 12. Meia noite e trinta minutos.
Sueli revira na cama, fuma e esquece as baratas.
Wiskow

domingo, 13 de julho de 2008

COLOSTRO

Não deu pra ver direito, mas creio que era “ciclo de sucção-degustação”. As letras pequenas, as palavras trocadas tão rapidamente que mal dava para acompanhar a velocidade do data show: uma palestrante explicando sobre mamadas e a forma certa de se banhar um bebê. Enquanto isso, um monte de mulheres grávidas, todas com os olhos e ouvidos atentos, vez por outra levantando-se para ir ao sanitário ou ao bebedouro, circulando pra lá e pra cá feito pingüins em marcha, os pés inchados, as barrigas enormes, preocupações.
Eu, discreto num canto, enganava o sono e tentava me entrosar ao ambiente, embora desconfiado de que não possuía muito jeito pra esses momentos sociais. Meu talento, como se diz, sempre se resumiu a disfarçar o meu desapego e o meu distanciamento em relação às formalidades e/ou obrigações. Levei a vida na xinxa, na minha, como quem não entendeu o recado muito bem.
O caso, no entanto, é que minha esposa, por demais inteligente e carinhosa, estava a duas horas sentada na cadeira ao lado, com a barriga imensa, atenta a qualquer explicação. Eu a olhava com aqueles olhos miúdos e me achava um tanto culpado por não entender tudo o que a palestrante lá na frente dizia. Eram termos novos, difíceis pra mim, e eu me sentia como se estivesse numa reunião da NASA, todas aquelas mulheres sendo um pouco astrônomos ou astronautas geniais.
- E o colostro, alguém sabe dizer porquê é tão importante para o recém-nascido?
Ninguém sabia, mas também não tinha importância, era a hora do intervalo. Numa sala ao lado, sucos e salgadinhos esperavam pelas ansiosas e esfomeadas gestantes. Garçons distribuíam copos e guardanapos. Num canto, uma senhora cortava e colocava em pratos plásticos alguns pedaços de bolo. Tudo havia sido preparado com muito capricho, carinho. E então aqueles pingüins de batas e vestidos estufados aproximaram-se, curvaram-se sobre a mesa e em menos de cinco minutos não havia mais nada ali, apenas farelos e papel. A sala recendia a Hiroshima após a grande bomba. Coisas da vida. Num banco de madeira que ficava perto da mesa de sucos, minha esposa conversava com algumas novas amigas – pratinhos no colo, boca cheia, resto de queijo na ponta do nariz. Eu, discretamente, mordisquei uma empadinha de ricota, fria e quase sem gosto, numas de interagir.
Rodrigo Melo

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Jukebox

Eu quis chorar e disfarcei olhando para o balcão com os olhos imóveis. Tudo parecia mais despedida com aquela luz entrecortada pelo movimento do ventilador de teto. Poucas pessoas no bar àquela hora. E mesmo assim eu só conseguia ver você com aquela jaqueta de couro falsa. Aos meus pés, a mala de roupas e um buraco enorme. Um precipício. Tudo mais uma vez desconhecido. Uma porta do bar é fechada, faz aquele barulho de fim de tudo. E eu quero correr o tempo de volta. Virar a ampulheta e te encontrar. Novo começo. Quando, ainda, a história não havia encoberto o seu sorriso em nuvens de tristeza. Que momento esse seria, se naquele esbarrão do metrô, mesmo gentil em nosso primeiro encontro, já existia um cinza estranho projetado no seu olhar?
Eu não sei, são tantos e todos os eventos na vida do ser humano. Tantas peças, nunca soube juntá-las. Nem sequer as minhas. Vide essa mala, sempre de lá pra cá, semi-aberta. Nada que carrego. Um vestido, uma sandália e uma caixinha de lembrar. E mesmo assim a mala parece tão pesada e pequena. Vai entender.
E você diante de mim, agora, segurando o copo de alma selada. Sem nada falar. Mas, o único mistério, é essa sombra maior que seu corpo projeta na minha existência. E eu fico aqui, apagada, protegendo a mala da gente estranha desse bar na estação de trem. É madrugada, fria, gelando a ponta do nariz e doendo no coração. Eu tento decifrar, mas apenas me perco em considerações pessoais. Sobre você, tudo é tão simples que dói. Então, só me resta fantasiar alguma teoria louca, sobre o cinza das nuvens de inverno. Aqueles dias sem fim de frio e pouca cor. Como essa vida que mora atrás do teu olhar. Nessa maldita madrugada.
Gasto um pouco de todo o dinheiro que tenho - contado para não morrer tão cedo – e coloco uma música na jukebox. Chamo você para dançar, não falo, apenas estendo a mão e te lambo com o olhar. Você me conforta no peito, e mexe as pernas muito devagar. Nós nos despedimos assim.
Sem encontrar o nosso passo.